- Por que você não adota?
- Eu? Nãoooo. Gosto de ajudar, mas adotar é mais complicado.
Rosa ouve a resposta, mas não parece disposta a desistir tão fácil. Teresa é voluntária no abrigo, onde as duas estão nesse momento preparando uma festa junina.
- É complicado. Tem que ser aprovado, a fila demora, não é simples.
- É simples sim. A habilitação é um curso, uma entrevista e uma visita, coisa rápida. A fila, sim, demora, mas para quem quer adotar bebês. Você quer um bebê? Você tá aqui arrumando festa para bebês?
...
- Não. Acho lindo aqueles bebezinhos redondos, mas essa festa é pros mais velhos, aqueles que não vão mais ser adotados, e pros que demoram.
- Também para aqueles que entram e saem toda hora.
Teresa ouve isso e para um pouco de arrumar as bandeirolas. Olha vagarosamente para o pátio e separa as crianças com o olhar. Aquele está aqui há cinco anos, nunca viu família. As duas menores estão sempre entrando e saindo - a avó, ou alguém da família, traz pro abrigo, dois meses depois a mãe aparece e pega de novo. As meninas já têm quarto no abrigo. Alguns meninos são fixos, outros passageiros.
- É, tem os fixos e os que entram e saem.
- Fixos mais ou menos. Cedo ou tarde todos saem. Se não for adotado, ou voltar para a família, sai aos dezoito.
- É verdade - diz Teresa ainda olhando para os meninos. Desce os olhos e volta a prender bandeirolas.
…
- Você não gosta de bebês.
- Não é que eu não goste, é que tenho medo. São tão frágeis. Entro em pânico.
- Entendo. Eu também tenho medo às vezes. E só de pensar em fraldas, desanima.
…
- Pois é.
- E os mais velhos?
- Não posso mudar a história deles. As tragédias que aconteceram, já aconteceram, não dá pra mudar.
- Mas o futuro dá. Olha a Ciça.
Ciça, uma menina de 14 anos, corria pelo quintal com outras crianças. Bonita, alegre.
Teresa olha rápido, mas disfarça.
- Ciça tem amigos aqui, não quer mais ser adotada. Já me falou isso.
- Ela tem 14 anos, cansou das visitas que não voltam. As famílias esperam uma criancinha pequena e fofinha, encontram essa menina com tamanho de mulher, se assustam, desistem. Tem mais de um ano que nenhuma família aparece pra vê-la. Ela cansou.
- E ela é tão gentil, tão doce ...- fala Teresa distraidamente.
- Ela não quer mais recuperar a infância perdida. Ela já passou disso. Agora ela pensa no dia de sair. Um dia ela vai sair.
- Vai. - fala Teresa como se estivesse vendo Ciça passar pelo portão e desaparecer na rua.
- Ela adoraria começar a vida com uma família.
- Eu não sou uma “família”, sou só eu.
- Mãe e filha, isso é uma família.
- É pouco. Veja quantos amigos ela tem aqui.
- Amigo não é família. E eles vão embora também. Esses que ela tá cuidando agora vão até mais cedo. Olha ali, – aponta Rosa – ela arrumou aquele menino pra receber visita.
…
- É verdade?
- Sim. Tem um casal que vai “visitar a festa do abrigo”, mas na verdade vem ver o menino. Bonito, branco, 4 anos. Tem uma boa chance. Não é muito comportado, mas isso eles vão descobrir depois.
- Ela tá arrumando ele pra visita desse casal? Como ela sabe?
- Todo mundo sabe.
Teresa olha novamente para Ciça, arrumando o cabelo do garoto.
- Esse é um amigo que vai embora. Ela tá fazendo o que pode pra ajudar ele ir embora.
- Gosto da Ciça.
- Eu sei – respondeu Rosa.
Depois de olhar para Ciça por algum tempo, Teresa prossegue.
- Mas não dá. Moro sozinha, gosto disso.
- Eu também. – disse Rosa.
- E eu sou jovem, posso levar um namorado pra casa. Como ia ser se tivesse uma menina em casa?
- E eu não tenho meus namorados?
- Não, não é isso, é que ...
- Ninguém vai na minha casa, Teresa. Não vou discutir sua vida amorosa. Hoje é sábado e você tá colando bandeirolas num abrigo de crianças. Tem compromisso pra noite? – Disse Rosa entre chateada e irônica.
Teresa não responde.
Rosa larga o enfeites.
- Veja, não estou dizendo que é simples, fácil. Nem mesmo confortável. Mas ela está crescendo. Não teve família até aqui. Precisou, mas não teve. É a vida, cada um tem suas sortes e azares. Mas não acabou, ela ainda precisa de ajuda. Uma ajuda que o abrigo, ou a Vara da Infância, não podem dar. Ajuda, orientação, sapatos, tudo.
- É. Não sei.
…
- Não tem fraldas. Toma seus remédios, se alguém levar no médico. – Rosa para e olha direto para Teresa – Você a levou no médico mês passado, não foi?
- E comprei os remédios. Sou quase mãe – ri.
- É sim. Você é o mais perto de uma mãe que ela tem.
- É, podia ser. Mas e os amigos?
…
- Os amigos ela visita, vê nas festas, como qualquer criança.
- Não sei, gosto da minha vida, minha casa vazia. Tá, não tenho namorado hoje, mas quem sabe? Amanhã eu posso namorar e até casar.
- Uma coisa não impede a outra. Ela também vai namorar. Vai precisar de orientação sobre isso.
- Minha? Eu vou orientar ela sobre namoro?
- Melhor do que eu.
- E eu vou dizer o quê?
…
- Vai dizer que o Mateus não presta.
- Mateus? Mateusinho? Ela quer namorar ele? É um moleque!
- Seu Mateus, entregador da padaria. Tem vinte e poucos anos e está de olho nela.
- Conheço esse, é um vagabundo. – responde surpresa e assustada. – Ele deve ter o dobro da idade dela!!
- Quase isso.
- Não, Ciça não é burra, ela não vai cair nessa.
- Teresa, Ciça tem o juízo que uma menina de 14 anos sem família tem. E pior que isso, o vagabundo do Mateus pode ser a passagem de sair daqui. Ela tem 14 anos, quase 15. Com 18 vai ser expulsa do abrigo. O vagabundo tem um emprego, uma droga de emprego, mas pode ser a passagem para a vida adulta.
- Mas, mas ... NÃO!
- Depois, como algumas meninas nova, pra segurar o "marido", ela engravida ...
…
- NÃO!! Mas para adotar, quanto tempo leva? E a fila?
- Ciça? Com 14 anos? Daquele tamanho? Não tem fila pra ela. Há um ano que ninguém aparece. Se você aparecer, sua habilitação sai rápido.
…
Teresa olha para a menina. Nesse momento, Ciça olha para o casal conversando com o menino que ela estava arrumando. Parece que está acompanhando uma apresentação, um recital de igreja. Ciça morde os lábios olhando para o menino, rezando para ele não fazer nada errado. Teresa morde os lábios olhando para Ciça, pensando em Mateus, o vagabundo do Mateus.
- Sabe, – diz Teresa – aquele quarto de costura que eu tenho, e não costuro nada.
- Sei.
- Cabe uma cama.